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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

... mais possibilidades.

Fragmentos Possíveis - Vol. IV


Meu primeiro tomo comprei de um desses livreiros que não existiam mais já naquele tempo. Uma encadernação bem costurada, capa em couro com letras douradas um pouco apagadas que liam "Fragmentos possíveis - Volume III".
Senti-me conquistado pelos aforismos, pela poesia, pelos ensaios. Tratava-se de uma peça literária única, literalmente: não havia indicação de editora, autor ou mesmo ano de publicação. Algumas passagens estavam em português, mas havia outras tantas em muitos idiomas diferentes que me proporcionaram muitas noites de árduo e gratificante trabalho. Eu parecia ter encontrado um novo combustível e aquela foi uma das melhores fases de minha vida.
Passaram-se alguns anos de contentamento até que eu decidisse iniciar a busca pelos dois volumes faltantes. A procura em si encheu-me de ansiedade e tornou-se verdadeira obsessão: ao longo de quinze anos esgotei grande parte de minhas poupanças, rodei duas vezes o mundo e fui reduzido a um esboço do que já havia sido.
Encontrei o Primeiro Volume em um vilarejo frio de Portugal: páginas em pergaminho, presas por uma capa de couro mole presa por um tipo de cinto com fivela. O Segundo Volume comprei de um cigano na Turquia: capa dura e páginas de um papel amarelado, com manchas e marcas de traças. A cada um dos achados, uma nova onda de trabalho de traduções, interpretações e até mesmo diversas publicações. Escrevi alguns livros inspirados naqueles fragmentos, consegui alguma fama e até uma pequena fortuna.
Por medo de perdê-los, tranquei os três tomos em caixas de acrílico, isoladas, com temperatura e umidade controladas, longe de qualquer olhar curioso que não o meu.
Foram-se já outros vinte anos desde que encontrei o último volume e sinto um vazio insuportável na existência. Novamente há ansiedade e incerteza e me pergunto se há um Quarto Volume, um tomo que renove minha paixão pela vida, que me salve de meus próprios pensamentos.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

tristeza na cidade.

Amanhã



Os carros passam pela avenida sem cessar, mas não os ouço mais.

É noite. Talvez o silêncio seja na verdade escuridão.

Chega um helicóptero inaudível. Sua luz não me cega, mesmo apontada para mim.

As pessoas param, falam. Mas não falam, pois não as escuto.

Tanta gente parada. A cidade não para. A cidade não silencia. Mas não ouço mais a cidade.

- Você não gosta mais de mim? Por que me ignora? Nem por educação me responde.

Todos dizem que a cidade é fria e, em seu silêncio, percebo isso. Fria, cada vez mais fria.

Sinto seu abraço, seu beijo. Me roubam o calor.

Sinto sua aspereza em meu rosto, me toca a face com mãos de concreto... ou de asfalto?

Me querem separar de você, mas não quero ir. Não me importa o silêncio, fico com você.

Sinto suas lágrimas quentes em meu corpo... quentes como nunca antes.

- Não chore, meu amor, ficarei aqui contigo. Sempre.

Somem as pessoas, os carros, tudo. Restamos nós.

Durmo no seu colo, no seu abraço. Deixe que amanhã é outro dia. Faremos as pazes.

Amanhã logo chega. Amanhã tudo se resolve. Amanhã

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

decepções no passado.

Minas


Um escravo trouxe o ouro. O havia encontrado no leito do riacho que movia o moinho do engenho.

A cana perdeu seu doce e o engenho ruiu. O aluvião era mais atraente e a casa grande ficou maior ainda.

O rei também gostou.

Os traficantes também gostaram.

O escravo morreu em segredo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

entropia.


moto-contínuo


Foram mais ou menos dez minutos. A traça voava e rodopiava na sombra, sem deixar o quarto escuro.


Imaginava se o inseto não gostava da luz. Se havia uma barreira invisível no limiar da porta. Se meu olhar curioso era o que a impedia de passar à luz.

Levantei-me, enrolei o jornal recebido naquela madrugada e mandei a pobre criatura de corpo e alma para o reino do amanhã. Não encontrei traços dela nem na parede, nem no jornal e nem no chão.

Sentei-me com a dúvida. A traça estava lá, ou eu a teria imaginado? Eu me levantei, ou apenas sonhei? Estava vivo, ou já não era mais?

Não sei quanto tempo se passou, mas fiquei outra vez intrigado com uma traça que hesitava em sair da escuridão.