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segunda-feira, 9 de julho de 2012

conto de reencontros.

Poeira na luz

Acordei quase sentindo a juventude primeira no corpo, chamado de meus sonhos por um inconveniente raio de Sol. A luz encontrou o ângulo perfeito entre as cortinas e atingiu em cheio meu rosto. Virei e revirei até que o retângulo luminoso atingisse meus dedos.

Naquela luz nova minha mão também parecia jovem, mas a magia durou um piscar de olhos: na pele já surgiam marcas, dobras e os sinais de que o tempo não para, mesmo que a gente insista em não lhe contar a passagem. Todo o resto em meu quarto foi lançado na escuridão e me senti preso numa caverna - minhas sombras na parede eram aquelas projetadas pelos indícios da vida vivida em cada ruga de meus dedos imóveis.

E o tempo mesmo parecia suspenso, pois aquele ponto de luz parecia não sair do lugar e eu já sentia como se tivesse passado toda a minha memória em revista. Pensei que pudesse estar morrendo. Depois pensei estar louco, mas li em algum lugar que essa dúvida é indício de sanidade.

Levantei-me e realizei todos os rituais matutinos. A vida, naquela altura, parecia reduzida àquilo: rituais, paramentos, rotinas. Diante do espelho já não via mais minha imagem. Não reconhecia aquele sujeito. Não queria.

Matei o dia de trabalho e fui andar sem rumo pela cidade. Um lugar tão grande, com tanta gente diferente, tantas culturas e tantos idiomas. Alguma novidade poderia encontrar.


Continua na próxima blogagem.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

técnicas.

Paisagem n.º 1, óleo sobre tela, 2012

A retomada de minhas atividades artísticas foi possível graças ao contato com muitos novos amigos de Cachoeira Paulista. No campo das artes plásticas eu destaco meu amigo e mestre, Roberto Mendes.

Sob sua orientação estou praticamente reaprendendo a pintar e o resultado ficou até que bom... E nossos colóquios artísticos alimentam não apenas a técnica, mas também o olhar e a sensibilidade, que devem ser companheiros constantes de qualquer pessoa - especialmente os que pretendem se arriscar nas artes.

Esta foi a primeira tela concluída em muitos anos e me agradou por demais o processo de crianção... outras virão.

domingo, 1 de julho de 2012

fantasmas.

Virada da serra

Contou-me meu pai que as tropas seguiam por uma picada no meio da mata fechada, pra cima de onde morávamos, muitos anos antes de abrirem a estrada de automóveis.

O arraial ficava duas léguas pra baixo de nossa casa, pelo caminho da serra, e até a cidade eram mais ou menos seis léguas de viradas e perdidos caminho da serra acima. Uma vez por mês a tropa subia o caminho, parando na casa de meus avós, e descia alguns dias depois carregada de mercadorias.

A tropa contava com uma dezena de cavaleiros e alguns animais de carga e supriam o arraial com produtos que não se podia produzir por alí, além de levar o queijo das fazendas para vender na cidade. Numa das idas, um de meus tios acompanhou os cavaleiros para concluir uma compra de terras em nome do meu avô e contou aos mais imãos e primos mais novos o que havia se passado.

Enquanto subiam ele ficara para trás por conta da falta de habilidade na condução do cavalo e, na virada da serra, tentou descansar para alcançar o resto da formação. Quando o caminho atingia o ponto mais alto e iniciava uma descida abrupta e o desfiladeiro passava do lado direito para o esquerdo, meu tio jurou ter visto um vulto. Disse ainda ter ouvido um choro de criança.

O medo o fez disparar na descida, colocando em risco até a montaria. Não falou nada a ninguém e isso o fez ficar ainda mais angustiado.

Os tropeiros foram vender e comprar, enquanto meu tio foi tratar dos negócios da família. Não visitou a casa de tolerância e nem foi aos bares, como era de seu hábito, tal foi a impressão daquele susto na virada da serra.

Chegada a data do retorno meu tio ficou apreensivo. Tentou seguir colado aos companheiros, mas ficou novamente para trás - a subida da volta era ainda mais íngreme e traiçoeira. Agravando a situação, a manhã estava mais escura que o normal e o abismo à direita parecia não ter fundo.

Na virada da serra estava sozinho. A tropa não estava por perto e não se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos. O vulto não passou: permaneceu parado no meio do caminho.

Era uma criança e chamou meu tio. Mas errou o nome: chamou pelo meu avô. O medo o fez ficar calado e a aparição percebeu seu erro. A criança entrou na mata, como se procurasse o caminho do desfiladeiro na direção do arraial.

Um dos companheiros da tropa apareceu, chamando meu tio para que se juntasse ao grupo. Terminou a viagem sem uma só palavra até que se viu a sós com meus avós, quando contou o acontecido.

O avô riu-se todo, acalmando seu filho mais velho dizendo que os tropeiros pregavam essas peças com os de fora do grupo. Meu tio não estava muito convencido, mas preferiu esquecer, logo depois de assustar os mais novos com o causo.

Anos depois, quando o governo abriu a estrada de terra para os automóveis, encontraram ossos de uma pessoa na altura da virada da serra. Eram ossos muito velhos e ninguém fazia ideia de como haviam chegado lá. Ainda mais intrigante, eram de uma criança.

* * *

O avô de meu avô havia proibido qualquer um de falar sobre o acidente na fazenda. Mandou levarem o corpo para um lugar alto, longe da casa. Pouco tempo depois nasceu meu avô e deram a ele o nome - e a identidade - do filho mais velho, enterrado na virada da serra para ocultar a vergonha da família.