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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

tranquilidade.

Mão única

Por muitos dias, dona Emengarda estava naquele vai e não vai. Durante anos parecia adiar o inevitável e, de tanto que durou, diziam que os biscoitos da viagem já até estavam duros.
Viveu alegremente e sempre cercada da amorosa família - uma simbiose perfeita. Quando ela ficou entrevada na cama, não deixou de sorrir e sempre tinha consigo alguém para lhe fazer companhia.
Mas as noites ela passava em claro, com dores que nenhum unguento poderia curar. Enquanto seus acompanhantes dormiam, ela contornava a escuridão pelo caminho mais longo. Foi isso que a fez fraquejar no final.
Seu sorriso saía menos natural e as frases muito entrecortadas. O brilho dos olhos já quase sumira e, então, todos se desesperaram.
Família religiosa, chamaram padre, pastor, rezador. Médicos muitos e os quartos da casa lotavam de parentes. Ao mesmo tempo havia sempre cerca de quinze pessoas no quarto com Emengarda. Não dormia, e mal parecia respirar.
Foi nesse estado em que a encontrei. Eu trabalhava de motorista de praça e me foi confiada a tarefa de levar o sobrinho preferido até a velha antes do fim derradeiro. De tão agradecida, ela quis me ver.
Até então nunca tinha visto cena igual: um bando apinhado em volta da cama, sentados em cadeiras contra a parede, chorando a morta que ainda não era. Ela quis me segurar a mão e senti-a tão fraca que o coração pulou uma batida.
A senhora está cansada? O sorriso acompanhado de uma lágrima me fez entender que estava exausta. Não sei bem porque, mas pensei em como alguns colegas de profissão andavam em marcha lenta para tentar poupar combustível e fazer o carro andar mais tempo com seus passageiros.
Me inclinei e lhe falei isso ao ouvido. Ela pareceu entender, pois seus olhos brilharam um tanto mais.
Mal saí do quarto e pude ouvir-lhe designar tarefas a todos. Vá buscar pão na padaria. Você, passa um café. Os dois aí, ao poço pegar água. Se entrasse alguém no quarto, logo era despachado para outro canto. Em pouco tempo estava sozinha para encostar no meio fio.
Nem cinco minutos se passaram e quando voltaram para lhe trazer o café estava sem vida na cama. Sem vida, sim, mas em sua face notava-se o alívio. Depois me disseram que eu fiz bem, que ela precisava se livrar do peso da família para poder passar.
Na verdade, se ela demorasse muito, eu teria de dormir naquele lugar. Sempre gostei de minha própria cama.

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